O volume total de medicamentos em falta nas farmácias portuguesas voltou a crescer em 2018, cerca de 32% a mais do que em 2017. Ao longo de todo o ano passado, faltaram mais de 64 milhões de unidades. Somente em dezembro, foram reportadas cerca de seis milhões de embalagens em falta por 1.938 farmácias. Os dados são do Centro de Estudo e Avaliação em Saúde (Cefar), da Associação Nacional de Farmácia (ANF), que acompanha o desenrolar da crise nas farmácias portuguesas.
O Cefar contabiliza as rupturas no ponto de venda desde 2014, quando faltaram 56,5 milhões de unidades. Em 2015, houve alta de 1,1%, mas, em 2016 e 2017, os números apresentaram queda de 14,7% e 0,9%, respectivamente. Em 2017, o volume de faltas caiu para 48,3 milhões, o menor em quatro anos. Porém, o problema voltou a preocupar as farmácias em 2018, quando as faltas chegaram a 64,1 milhões de unidades.
Segundo a farmacêutica e empresária Isaura Martinho, cuja farmácia está localizada em Lisboa, a situação é muito grave. “Farmácias não têm liquidez para fazer estoques e as indústrias não querem vender para as farmácias portuguesas porque os preços são muito baixos”, pontua Isaura.
No país, o governo divide a conta com os consumidores por meio de um sistema conhecido como comparticipação, pagando 90% do valor do medicamento. Entre 2012 e 2016, segundo o relatório Estatística do Medicamento, produzido pela Autoridade Nacional do Medicamento – Infarmed, o número de medicamentos comparticipados pelo Estado a 90% aumentou 31%, passando de 1.157 medicamentos para 1.513. Nesses cinco anos, o número total de medicamentos com algum tipo de comparticipação passou de 5.907 para 6.669 fármacos.
Portugal, atualmente, tem aproximadamente 2,8 mil farmácias e 9,4 mil farmacêuticos. A edição do relatório com dados de 2017 já foi publicada, mas está indisponível para acesso no site da Infarmed.
Faltam medicamentos essenciais
Os medicamentos em falta nas farmácias portuguesas pertencem a diversas classes. Muitos são de prescrição médica, indicados, por exemplo, para o controle da diabetes e hipertensão, e alguns considerados essenciais pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo o relatório do Observatório dos Medicamentos em Falta, do Cefar, o Top10 dos medicamentos em falta reportados pelas farmácias, em 2018, é o que consta na tabela abaixo:
Top10 dos medicamentos considerados essenciais pela OMS que estão em falta em Portugal:
Em entrevista para uma TV local, a presidente da Infarmed, Maria do Céu Machado, disse que a contagem feita pelas farmácias está incorreta. Em 2018, a instituição recebeu apenas 435 notificações de falta de medicamentos. De acordo com ela, as farmácias estão adicionando as rupturas transitórias ao cálculo, ou seja, aquelas em que os medicamentos podem ser conseguidos até o fim do dia, por exemplo, e que não caracterizam escassez do medicamento.
Maria do Céu afirmou também que não faltam medicamentos essenciais e que há alternativas. “Raras são as situações em que o farmacêutico não pode efetuar a troca do medicamento por um genérico ou mesmo um medicamento de marca. Custa-me a acreditar que não há alternativas, porque para diabetes, por exemplo, há dezenas de possibilidades, seja de insulina, seja de outros tipos de antidiabéticos orais”, comentou a presidente da Infarmed.
A Infarmed inspeciou, no ano passado, mais de 200 farmácias e 150 distribuidoras. Verificou algumas situações de falhas, mas nada diferente do que ocorreu em anos anteriores. Segundo Maria do Céu, já foram solicitados documentos às farmácias sobre quais distribuidores não estão fornecendo, mas a Infarmed não obteve nenhum retorno.
Por e-mail, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) disse que não há justificativas para a atual falta de medicamentos em Portugal e que a indústria farmacêutica assegura o abastecimento do país com os medicamentos necessários para a saúde dos portugueses.
Crise é muito maior
A Revista da Farmácia teve acesso a vários outros documentos que traçam um panorama pouco animador para o setor de farmácias em Portugal. Nos últimos seis anos, o país registrou aumento de 262,3% no número de insolvências e aumento de 154,4% no número de penhoras. Em dezembro de 2012, havia 241 farmácias nessas condições. Em dezembro de 2018, esse número chegou a 675, o que equivale a 23,2% de todo o setor em Portugal. Os dados são da Coface, empresa que detém uma base de dados empresarial nacional e informações financeiras e de crédito.
“É difícil fazer estoques de medicamentos para evitar faltas num setor fragilizado como o nosso, em crise, cujas margens são, a par da Romênia, as mais baixas da Europa, e onde a maioria das farmácias continua a ter prejuízo para dispensar os medicamentos essenciais, comparticipados pelo Estado. Perto de 25% das farmácias portuguesas continuam a enfrentar processos de penhora e insolvência”, comentou Isaura Martinho.
Muitas dessas farmácias estão no interior do país. “As farmácias são o apoio que resta em muitos lugares onde já não há outros profissionais, nem serviços de saúde. São, portanto, indispensáveis para garantir a igualdade no direito à saúde”, acrescentou Isaura.
Portugal é o único país da Europa com descontos em medicamentos de receita médica, com preço fixado pelo Estado. Segundo Isaura, os descontos estrangulam as pequenas farmácias, sendo uma prática desleal que prejudica o equilíbrio da rede. Por isso, números tão alarmantes de insolvência e penhora. “Se queremos salvar as farmácias do interior, que resistem junto às populações mais isoladas, não podemos permitir práticas de mercado em que os mais fortes matam os mais fracos”, finaliza.