Como meias-verdades se tornam verdades absolutas

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Há dois tipos de instrutores: aquele que tem uma profunda especialização acadêmica, que mergulhou em teorias (ou, pelo menos, em algumas teorias), que se tornou um excelente repetidor de conteúdo e, aliado a uma boa técnica de oratória, oferece um excelente produto como treinamento.

Porém, a experiência prática desse instrutor costuma ser inconsistente com o volume de conhecimento adquirido, quando não é nula. Ou seja, nunca pôs em prática o que prega. Apenas repete o que lê, não o que vivencia. Treino é treino, jogo é jogo, como sabemos.

Essa contradição é muito comum nos famosos “estudos de caso”, em que renomados pesquisadores, que nunca saíram de sua confortável sala de aula ou de suas prateleiras de livros, questionam os erros e acertos de pessoas que tomaram decisões com as informações que tinham naquele momento e com os recursos de que dispunham.

Anos depois, parece óbvio que uma certa decisão era errada, mas, no calor do momento, muito provavelmente, os que hoje criticam a decisão talvez tivessem tomado a mesma atitude.

Daí minha eterna desconfiança com os tais estudos de caso conduzidos por acadêmicos que jamais fizeram algo além de ler livros e dar aula e minha grande admiração por aqueles palestrantes que primeiro construíram uma carreira, ganharam “casca”, erraram, acertaram, aprenderam e depois, generosamente, replicaram seu conhecimento adquirido. As palestras do TED oferecem um rico repertório de palestrantes dessa segunda categoria. Pessoas que fazem e que generosamente compartilham suas realizações.

Sou um instrutor de Liderança que pertence a essa categoria de profissionais que errou, acertou, aprendeu e buscou entendimento acadêmico para, finalmente, encontrar o equilíbrio entre o desejo de fazer e o conhecimento técnico. Adoro compartilhar conhecimento e fazer com que aqueles que participam de meus cursos enxerguem o que as modernas teorias de liderança podem agregar à pratica de obter resultados por meio de pessoas.

Eu tenho certeza de que o fato de eu já ter vivido na pele as alegrias e agruras do comando de equipes traz a veracidade e o discurso franco que dá aos participantes de meus cursos a segurança de estarem falando com alguém que “já calçou os mesmos sapatos”.

Pois bem, recentemente tive o privilégio de participar de um curso de liderança ministrado por um típico instrutor “acadêmico”, com um robusto currículo e especialização numa certa ferramenta de análise de perfis comportamentais. Foi uma experiência muito interessante e é sempre revigorante refrescar nosso conhecimento.

Porém, num certo momento, o instrutor disse, categórico, que o feedback tipo sanduíche não se usava mais. Segundo ele, estudos recentes provavam que a clássica forma de feedback que consiste numa abertura com pontos positivos, um recheio com os pontos diretos e objetivos de ajuste e um fechamento com um acordo de melhorias e prazos estabelecidos não funcionava mais e que agora o que valia era o “papo reto”, sem delongas, nem os cuidados que a técnica do sanduíche preconizava.

Foi uma surpresa para muitos dos presentes na sala, uma vez que a técnica do sanduíche é uma referência de décadas no processo de liderança. Cautelosamente, perguntei ao instrutor onde ele havia obtido essa informação, ao que ele informou que foi uma certa pesquisa, num certo instituto.

Como ainda teríamos mais um dia de curso, fiz uma pesquisa e encontrei o artigo de onde o instrutor tirou a conclusão de que a técnica de sanduíche não se aplicava mais.

Enfim, era uma pesquisa de um grupo especifico, numa situação específica, numa cultura bem diferente da nossa e cujas conclusões podem até ser aplicáveis, mas estavam longe de ter um status de unanimidade universal.

Ok, um grupo de acadêmicos chegou a uma conclusão, mas é necessário ter um filtro antes de se dizer que a conclusão à qual esse grupo chegou é aplicável universalmente, ainda mais sobre um tema tão vital nas relações humanas no trabalho como o feedback.

O fato é que o instrutor, repleto de conhecimento acadêmico, mas com pouquíssima vivência pessoal do que é liderar equipes, achou muito razoável repetir um conteúdo que leu num artigo e, sob o manto de sua autoridade de especialista, decretar como verdade absoluta o que havia lido.

Certamente, se já tivesse comandado muitas equipes, tivesse que ter dado muitos feedbacks, tomado difíceis decisões de demissão e sido colocado à prova e desafiado por seus subordinados, saberia que é, no mínimo, arriscado acreditar “sem filtro” numa verdade absoluta produzida no meio acadêmico. Verdade essa de aplicação controversa em certas circunstâncias, ainda mais no povo latino, que tanto valoriza o relacionamento interpessoal. Concluo essa reflexão estimulando o espírito crítico dos meus leitores, para que sempre questionem as afirmações de seus instrutores, que não engulam pílulas sem reflexão, inclusive as que eu, eventualmente, venha a lhes oferecer, como este próprio artigo.

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Fernando Gaspar

Mestre em Administração, com especialização em Gestão pela McGill University e pós-graduação em Varejo. Em sua coluna, Fernando faz reflexões sobre gestão, operação de varejo e outras “cositas” mais.
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