Chuvas no RS: quatro histórias de perda, superação e esperança

A tragédia do Rio Grande do Sul é uma coleção de histórias. É a história da Tatiane, da Leda, da Letícia, da Luciana e dos muitos outros empresários, empresárias, farmacêuticos, farmacêuticas que se viram sem suas casas e sem suas farmácias.
Tragédia Rio Grande do Sul

Tatiane Mossmann é formada em Farmácia e mora em São Leopoldo (RS), cidade com 220 mil habitantes, dos quais 180 mil foram atingidos pelas fortes chuvas. A farmácia dela ficou embaixo da água. “Nossa perda foi total. Foi-se todo o nosso estoque. Estávamos abastecidos para o inverno – que já chegou –, saindo de um mês pós-feira comercial da rede Agafarma. Perdemos mobiliário, uniformes, equipamentos. São 18 anos de história destruídos em poucas horas. As águas subiram rapidamente, deixando-nos 23 dias sob um misto de medo e incertezas, pois tínhamos apenas notícias dos barqueiros que faziam as rondas para entregar água e alimentos aos moradores que não aceitavam ser resgatados.”

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Farmácia da Tatiane, em São Leopoldo, depois de as águas baixarem

A empresária conseguiu voltar ao local no dia 22 de maio vestindo roupas de pesca impermeáveis. A visão foi um choque. “Não consegui abrir a porta. Tive que retornar mais tarde e encontrar coragem para entrar. As cenas, o cheiro são horríveis. A sensação de impotência diante da fúria da natureza nos deixa minúsculos diante da tragédia.”

Amparada pelo marido e pela filha, Tatiane conseguiu limpar a farmácia com ajuda de amigos, que fizeram um mutirão durante quatro dias de muito trabalho para retirar os resíduos e a lama. “Não sabemos como vamos nos reerguer. Os empréstimos são praticamente inatingíveis aos pequenos e inúmeros comércios atingidos na nossa cidade. Estou contando com a ajuda de muitos amigos e colegas de profissão. Nós não temos absolutamente nada para retomar as atividades, mas precisamos fazer isso. Nossos colaboradores precisam do emprego, nossos pacientes precisam do nosso atendimento.” Até o fechamento desta reportagem, Tatiane seguia com a farmácia fechada e ainda não havia recebido nenhum tipo de ajuda financeira ou de produtos.

“A água foi subindo rapidamente, e as três lojas ficaram submersas”

Leda Oro perdeu totalmente duas farmácias e parcialmente a terceira. “Para nós, tudo começou no dia 3 de maio. A água foi subindo rapidamente, não tínhamos acesso. As três lojas ficaram submersas. Uma delas tem segundo piso, para onde levamos fraldas, computadores, mas o restante foi perdido. Nenhum móvel foi salvo, assim como nenhum medicamento. O desespero foi grande. Pensávamos que seriam dois, três dias… amanhã vai baixar, e não baixava. Sete dos meus funcionários perderam totalmente suas casas. A gente não sabia o que fazer”, conta a empresária.

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Uma das três farmácias da Leda

Foi quando Leda chamou o irmão e sócio para dizer que algo precisava ser definido ali, naquele momento. “Se pensássemos no que havíamos perdido, iríamos enlouquecer. A nossa estratégia seria esperar a água baixar, escolher uma das lojas, entrar, limpar tudo e recomeçar do zero. As outras duas ficariam para outro momento.” E assim fizeram. No momento da publicação desta reportagem, uma loja já foi reaberta, a segunda está sendo higienizada e a terceira ainda é uma interrogação para Leda.

“Eu vi associados da Agafarma desesperados. Fiquei 28 dias sem dormir e ainda tenho dificuldades para sustentar o sono. Dívidas, salários a serem pagos, preocupações com o futuro. No entanto, em situações assim, não existem duas opções. Só existe uma: seguir em frente. É o que temos que fazer”.

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Perda total em duas lojas e parcial na terceira

Leda está tentando ver a situação positivamente. Ela conta que conheceu pessoas que fizeram a vida dela muito melhor durante todos esses dias de sofrimentos e incertezas. “Estamos numa fase de reconstrução e esperança. Estou vivendo um dia de cada vez. Minha mãe me perguntou: ‘que dia volto para minha casa?’. Que casa? Não tem mais casa! A dor não é só minha. É de uma cidade inteira.”

Leda está se reerguendo com recursos próprios, auxílio da Agafarma e alguns associados, doações da Febrafar e dinheiro do Pronampe – Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. A estimativa é de uma perda de R$ 2 milhões.

“Criamos escalas e atuamos em plantões para descansar. Assim, sobrevivemos aos primeiros 20 dias”

Letícia Andrighetti, farmacêutica que trabalha com Educação em Saúde, atuou como voluntária em abrigos da Região Metropolitana desde o primeiro dia da catástrofe climática no Rio Grande do Sul. Ela liderou a montagem das farmácias de campanha, preparando os locais, recebendo as doações, organizando os medicamentos, atendendo e orientando os pacientes.

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Letícia atuando como voluntária em abrigo para crianças autistas e seus familiares

“No dia 5 de maio, eu estava voluntariando na Sociedade de Ginástica de Porto Alegre (Sogipa) para estruturar a farmácia de lá. Foram mais de 12 horas de trabalho, um dia muito triste porque as pessoas eram socorridas ali, bem próximas a nós. Dentro do abrigo, todos estavam muito perdidos e impactados, mas não podíamos parar. Continuamos a receber as doações, armazenar da melhor forma possível e pensar nas várias demandas de saúde que poderiam vir dali para frente”, conta.

Dias depois, Letícia passou a voluntariar em um abrigo próximo à casa dela, criado para receber crianças autistas e suas famílias. Os organizadores do abrigo não sabiam o que fazer com os medicamentos que estavam chegando. “Comecei sozinha, estruturei a farmácia e logo vieram outros farmacêuticos. Transformamos um sala bem pequena na farmácia de campanha do abrigo. Foi bem desafiador, não tinha água, energia. Apesar dos desafios, nos tornamos uma equipe ágil e coesa. Criamos escalas e passamos a atuar em plantões para conseguirmos descansar. Assim a gente sobreviveu aos primeiros 20 dias da catástrofe.”

A farmacêutica também passou a atuar em um abrigo para pacientes com câncer em tratamento com quimioterapia e radioterapia, os quais, devido ao fechamento de muitas estradas, não podiam se deslocar até os centros especializados. “Ter todos os medicamentos era um grande desafio, alguns eram muito específicos. A lista de medicamentos essenciais do município não estava atendendo à demanda”, relembra. Nesse cenário, Letícia e outros voluntários farmacêuticos contaram com a ajuda da Faculdade de Farmácia da UFRGS e da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), que atuaram como uma central de distribuição de medicamentos diversos, possibilitando que a equipe pudesse atender às necessidades de forma mais efetiva.

“Estávamos comprometidos em conseguir os medicamentos para os abrigados, porque muitos ali era pacientes psiquiátricos, que fazem uso de medicamentos controlados. A falta de uma dose poderia desencadear uma crise no paciente, colocá-lo em risco e todos que estavam à sua volta. Precisávamos garantir uma dispensação minimamente segura”, recorda.

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Letícia em seu carro garantindo o transporte dos medicamentos até os abrigos

A rede de saúde está voltando a ser estruturada como antes. Segundo Letícia, o papel dos voluntários nesse momento de reconstrução é garantir que as pessoas que estão voltando para suas casas consigam armazenar e utilizar corretamente os medicamentos, que sejam informadas sobre onde consegui-los para que não haja abandono do tratamento.

No fechamento desta reportagem, Letícia ainda atuava como voluntária nos abrigos para autistas e pacientes com câncer. “Em 20 anos de profissão, nada me preparou para o que eu vivi nas últimas semanas. Não tem diretriz, não tem protocolo que possa prever a melhor forma de trabalho num situação como a que vivemos. E ainda não acabou. Vamos para a fase de reconstrução.”

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“Cada caixa de medicamento que saía para seu destino era uma vitória absoluta e gratificante”

Luciana Meine é farmacêutica e foi voluntária no Cremers para ajudar os desabrigados durante a maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Assim como inúmeras empresas de Porto Alegre, o local onde ela trabalha foi atingido pelas águas, permanecendo sem operar por cerca de 25 dias. E, como muitas pessoas, também se sentiu no dever de ajudar de alguma forma. 

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Luciana (da seta) e outros farmacêuticos voluntários

Nos primeiros dias, quando começaram a surgir os abrigos e a necessidade de atendimento médico à população, o Conselho Regional de Farmácia do Rio Grande do Sul (CRF/RS) e outras instituições da área da saúde, como Cremers, Simers, Faculdade de Farmácia da UFRGS e Amrigs, uniram-se para atender às pessoas que estavam nos abrigos, já que a grande maioria havia perdido medicamentos e receitas, e muitos não poderiam interromper seus tratamentos.

Em meio a esse momento crítico, foi criada uma força tarefa para manter abastecidos com medicamentos e materiais hospitalares os abrigos e as secretarias de saúde de alguns municípios atingidos. Com a ajuda de médicos, redes de farmácia e indústrias farmacêuticas, as doações de medicamentos chegavam de todo o Brasil.

“A solidariedade foi enorme e fundamental para suprir essa carência que não parava de aumentar, assim como as impiedosas águas do Rio Guaíba. Nós, voluntários, tínhamos que ser ágeis, coordenados e eficientes em um ambiente improvisado, alinhados a todo o esforço logístico externo, para desempenhar esse importante papel na retaguarda, fazendo triagem, verificando a integridade e a validade dos medicamentos, organizando as prateleiras por ordem alfabética e conforme a classe terapêutica, de forma que pudéssemos separar com agilidade os medicamentos dos ininterruptos pedidos de socorro”, recorda Luciana.

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Organização dos medicamentos por Luciana e amigos voluntários

Segundo ela, foram dias muito desafiadores, pois tinham de atender rapidamente a população que estava precisando muito de medicamentos em meio a um cenário de calamidade sem precedentes. “Por isso, cada dia, cada momento dedicado e cada caixa que saía para o seu destino configuravam-se uma vitória absoluta e gratificante.”

Articulação do CRF/RS garantiu medicamentos para muitos desabrigados

Ainda não é possível mensurar as perdas do setor farmacêutico, mas sabe-se que muitos estabelecimentos foram destruídos. O CRF/RS está mapeando profissionais e empresas afetadas com base em informações que chegam de diversas associações de farmacêuticos, com o objetivo de divulgar um panorama mais preciso sobre as perdas.

O CRF/RS começou a atuar logo no início da tragédia, no fim de abril. Criou um comitê de crise para ajudar entidades dos setores público e privado, mobilizou farmacêuticos para o trabalho voluntário, inclusive profissionais de outros estados, e fez parcerias com entidades que serviram de centros de distribuição de medicamentos para todo o Rio Grande do Sul.

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Doações que chegaram de todo o Brasil para as farmácias de campanha

“Ficamos responsáveis pelo cadastro estadual de voluntários farmacêuticos. Os colegas deram assistência farmacêutica em abrigos e centros de distribuição. Trabalharam juntos em uma equipe multiprofissional de saúde, atendendo aos desabrigados, assim como na triagem de medicamentos recebidos por doação e na separação de pedidos para o restante do Estado”, conta Giovana Ranquetat, presidente do CRF/RS.

O Conselho também se mobilizou para manter os farmacêuticos voluntários informados sobre as legislações que estavam sendo adaptadas à realidade e orientou sobre outros assuntos, como a leptospirose, que até o fechamento desta reportagem já havia atingido mais de 1,6 mil pessoas segundo dados do Ministério da Saúde. “Foram elaborados materiais a respeito de orientações emergenciais sobre assuntos pertinentes à calamidade como leptospirose, imunização, apresentação do farmacêutico ao abrigo, dispensação e unitarização nas farmácias temporárias, doações”, complementa Giovana.

Nos abrigos, os fiscais do CRF/RS ofereceram suporte técnico e orientativo para garantir que a assistência farmacêutica fosse prestada adequadamente nesses locais. Além disso, mantiveram o trabalho de orientação técnica por meio das publicações oficiais do CRF/RS, sempre sensibilizados com as diversas situações enfrentadas. “Nossa equipe interna de registros atuou com agilidade na emissão dos documentos para regularizar os estabelecimentos e a atuação dos farmacêuticos voluntários de outros Estados. Unimos forças para que as normas vigentes fossem cumpridas”, acrescenta a presidente do CRF/RS.

Com o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) e o Governo do Estado, conseguiu que as prescrições de medicamentos sujeitos a controle especial, como entorpecentes ou psicotrópicos, fossem prescritas em papel não oficial em casos de emergência. Além disso, obteve a possibilidade de flexibilização para que prescrições do tipo notificação pudessem ser feitas de forma digital.

“Como presidente do CRF/RS, enfrentar a situação pós-enchente tem sido um desafio, mas também uma oportunidade de colaboração. Estabelecemos parcerias essenciais e vimos o trabalho dedicado de voluntários, associações farmacêuticas, conselhos, empresas, médicos e farmacêuticos. Isso foi crucial para enfrentar as consequências das chuvas em todas as cidades do estado”, finaliza Giovana.

Fotos: acervo pessoal das entrevistadas

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Este post tem um comentário

  1. MArilia

    Parabéns pela coragem, resignação, solidariedade e amor fraterno de todos voluntários. Especialmente dos que também foram atingidos pela enchente e foram auxiliar os demais. Não existem palavras para descrever o que milhares de pessoas tem passado no RS, nem imaginação para quem está de longe, como eu, para entender tamanha tristeza.

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