A classe farmacêutica se mobilizou, nos últimos dias, contra o PLS 545/2018, do senador Guaracy Silveira (PSL/TO), suplente da senadora Kátia Abreu. O projeto de lei, apresentado em dezembro do ano passado, propõe que antibióticos possam ser vendidos sem prescrição médica em locais que, comprovadamente, não tenham acesso a serviço de saúde pública regular.
Com essa proposta, o senador pretende facilitar o acesso das pessoas de baixa renda aos antimicrobianos, sob a justificativa de que é injusto forçá-las a pagar pela consulta médica onde não há atendimento público de qualidade.
“A presente proposta procura amenizar a dificuldade enfrentada pelas pessoas mais pobres, as classes C, D e E, que representam quase 80% da população na hora de comprar um remédio para tratar doenças simples e do cotidiano. Além de muitos medicamentos ainda terem preços altos, o que se explica pelas patentes internacionais, conseguir uma receita médica para comprá-los na farmácia é ainda mais dispendioso. Amoxicilina, antibiótico muito usado para combater dores simples de garganta, custa R$ 16 nas farmácias aqui de Brasília, mas a consulta médica para se conseguir a receita, R$ 200, R$ 300. Isso está certo?”, justificou o senador.
Veja a justificativa do senador na íntegra
Classe farmacêutica se mobiliza contra a proposta
Embora os farmacêuticos não prescrevam medicamentos antimicrobianos, podem orientar o paciente sobre a melhor forma de fazê-lo. Por isso e pelos riscos da resistência bacteriana, vários Conselhos de Farmácia se posicionaram publicamente contra a proposta em suas redes sociais, entre eles, Amapá, Goiás, Maranhão, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.
O Conselho Federal de Farmácia (CFF) emitiu nota dizendo que aguarda o início das atividades no Congresso Nacional para se reunir com o autor do projeto e demais senadores, com o objetivo de mostrar que o uso de medicamentos em geral, e não apenas de antimicrobianos, é muito mais complexo do que o suplente de senador demonstrou acreditar em seu discurso durante apresentação do projeto.
“Compreendemos a angústia do senador quanto à situação da população sem acesso à assistência que lhe permita fazer o uso correto e seguro de medicamentos, mas a saúde é um direito constitucional, e a obrigatoriedade da presença do farmacêutico nas farmácias durante todo o tempo de funcionamento para orientar o paciente sobre uso racional faz parte desse direito, por determinação legal”, diz a nota.
Na nota, o CFF cita que os farmacêuticos, além do conhecimento técnico, têm todo o respaldo para contribuir na ampliação do acesso da população brasileira à saúde de qualidade, incluindo os moradores das localidades mais distantes.
Resistência bacteriana em 22 países
A intenção do senador é louvável, mas a forma como se pretende atingir isso é questionável, pois estudos já demonstraram que tomar antibiótico por conta própria, sem orientação médica e farmacêutica, pode provocar resistência bacteriana.
Segundo relatório divulgado, em 2018, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), 500 mil pessoas de 22 países de baixa e alta renda estavam sob suspeita de infecção por bactérias resistentes a antibióticos.
“Algumas das infecções mais comuns do mundo – e potencialmente as mais perigosas – estão provando ser resistentes aos medicamentos”, acrescenta. “E o mais preocupante de tudo: os patógenos não respeitam as fronteiras nacionais. É por isso que a OMS está encorajando todos os países a criarem bons sistemas de vigilância para detectar a resistência aos medicamentos e fornecer dados para este sistema global”, diz o relatório.
Nos últimos anos, o Brasil evoluiu na dispensação de medicamentos e já dispõe de leis e normas sanitárias que impedem o uso de antibióticos sem prescrição médica. Em 2011, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou a RDC nº 20, que passou a determinar a exigência de retenção de receita para antimicrobianos, bem como o registro da venda no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC). Em 2014, essa RDC foi atualizada.
Segundo a Anvisa, “consumir medicamentos de forma inadequada ou usá-los de forma irracional pode causar dependência, resistência a antibióticos, reações adversas, intoxicação e até a morte. Além disso, a combinação errada de medicamentos também oferece riscos à saúde, já que um medicamento pode anular ou potencializar o efeito do outro. A automedicação pode também levar ao agravamento da doença, pois a utilização de medicamentos sem a informação adequada pode esconder determinados sintomas e fazer com que a doença evolua de forma mais grave”.
Para Patricia Helena Castro Nunes, farmacêutica do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/FIOCRUZ), o projeto de lei está totalmente desconectado do Plano de Ação Global em Resistência a Antimicrobianos, lançado, em 2015, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), do Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única, lançado em 2018, e de todos os documentos publicados recentemente pela Anvisa sobre essa questão.
“O uso irracional e a baixa qualidade de medicamentos antimicrobianos são causas mais do que reconhecidas do aumento do fenômeno da resistência. Além disso, é fundamental que o paciente consiga aderir ao tratamento. Por isso, a participação de médicos, farmacêuticos e outros profissionais de saúde não pode ser diminuída e sim ampliada e qualificada. Trata-se de uma questão de saúde pública e não de corporativismo”, comentou.
A Revista da Farmácia entrou em contato com o Conselho Federal de Medicina, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria, na manhã desta terça-feira.