Da telemedicina à telefarmácia: será hora de começar um debate?

Da mesma forma que o CFM vem propondo atividades médicas remotas, profissionais da área farmacêutica começam a se perguntar de que forma a tecnologia poderia contribuir ainda mais na relação diária com os pacientes.

A resolução sobre telemedicina, publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no fim do ano passado, e a polêmica que toma conta desse assunto trouxeram à tona discussões paralelas no âmbito da assistência e do atendimento farmacêuticos. O contexto atual acabou se tornando terreno fértil para debates sobre a telefarmácia, um termo novo, que vem sendo empregado com mais frequência no meio farmacêutico para definir a assistência e o atendimento remotos. Isso porque, vale lembrar, assistência é o que diz respeito ao medicamento, enquanto atendimento é relacionado ao paciente.

Da mesma forma que o CFM vem propondo atividades médicas remotas, com o auxílio de recursos tecnológicos como teleconsulta, telediagnóstico e telecirurgia, profissionais da área farmacêutica começam a se perguntar de que forma a tecnologia poderia contribuir ainda mais na relação diária com os pacientes de farmácias e drogarias.

“A tecnologia nos permite, cada vez mais, otimizar tempo, recursos e custos. Sempre que esta otimização puder ser feita sem prejuízo ao ponto central do que está sendo tratado, eu acredito que não há motivos para não fazermos. Se hoje o Brasil já permite o uso da telemedicina, que, em tese, envolve questões muito mais complexas, por que não autorizar, por exemplo, o uso da assistência farmacêutica remota como um complemento para cobrir todo o horário de funcionamento das farmácias, sendo utilizada no período fora do expediente normal do farmacêutico?”, questiona o empresário do segmento farma e presidente da Fecomércio do Rio Grande do Norte, Marcelo Fernandes de Queiroz.

Para o presidente da Associação do Comércio Farmacêutico do Estado do Rio de Janeiro (Ascoferj), Luis Carlos Marins, uma das entidades regionais mais expressivas do País, a telemedicina abre prerrogativas para os demais setores da saúde. “Tenho certeza de que a farmácia poderá evoluir nesse sentido. Se a Medicina, que é a parte da saúde que faz diagnósticos e prescrição, já entende dessa forma, é inevitável que o nosso setor caminhe para a telefarmácia”, defende.

Da telemedicina para a telefarmácia

O fato de o CFM ter editado a Resolução 2.227/18, que define a telemedicina como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologia, não pacifica o entendimento de que essa seja uma prática aceita pela sociedade em geral, mas abre prerrogativas para ampliar a discussão em outras áreas da saúde.

“Os profissionais farmacêuticos exercem um papel importantíssimo no resultado de um tratamento médico. É por meio da assistência ao paciente, sobretudo na orientação quanto à utilização do medicamento prescrito, que o farmacêutico contribui para o sucesso do tratamento. Ocorre que, na contramão do conselho da classe médica, a legislação brasileira exige que a farmácia mantenha farmacêuticos presentes durante todo o horário de funcionamento. De forma equivocada, a norma prejudica demasiadamente a atuação do profissional”, argumenta o advogado Muraccioli Cunha André.

De acordo com Jorge Sequeira, da Arko Advice, principal empresa de análise política do País, para se desenvolver, no segmento farmacêutico, uma norma semelhante à resolução da telemedicina, que possibilite ampliar o escopo do atendimento farmacêutico remoto, tanto por via legislativa quanto pela via administrativa/regulatória – caso de uma resolução – seria importante o consenso do Conselho Federal de Farmácia (CFF).

“De toda forma, a melhor estratégia de atuação para o setor é identificar os stakeholders relativos ao tema telefarmácia, tanto aliados como neutros e opositores, a fim de buscar o apoio dos aliados e barrar os efeitos da atuação dos demais”, analisa Sequeira.

Segundo ele, a via judicial é sempre uma possibilidade de o setor utilizar para ampliar a telefarmácia, mas o caminho político, de debates e composições, apesar de mais longo, se bem construído, torna-se mais seguro, inclusive frente às ações judiciais que venham a surgir.

O CFF informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que está trabalhando em uma proposta de resolução que será levada ao Plenário da casa ainda esta semana, mas não quis dar mais detalhes sobre o texto. Já se sabe que a dispensação por receituário eletrônico será contemplada nessa nova resolução.

Normas sanitárias impõem restrições

Atualmente, a telefarmácia não está prevista na legislação sanitária, que é taxativa sobre a presença do farmacêutico no estabelecimento durante todo o horário de funcionamento. As leis federais 5.991/1973 e 13.021/2014, principais normas que regulam o setor, são claras no que diz respeito à presença física do responsável técnico.

A RDC 44/2009, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), prevê somente a dispensação remota, mas apenas para farmácias e drogarias abertas ao público, com farmacêutico responsável presente durante todo o horário de funcionamento. A resolução não cita nenhum outro serviço ou atividade que possa ser feita remotamente.

O avanço da telefarmácia passa pela necessidade de uma revisão nas normas sanitárias do País. Para a professora de Tecnologia Farmacêutica do ICTQ e consultora em assuntos regulatórios, Luciana Colli, se a RDC 44 já tivesse sido atualizada, certamente citaria o uso do WhatsApp. “Hoje em dia, muitas farmácias dispensam pelo aplicativo depois de avaliar a foto da prescrição médica. É mais seguro do que o paciente ler a receita pelo telefone, o que sempre foi proibido, mas muitas farmácias faziam”, comenta ela.

Possíveis benefícios gerados pela telefarmácia

O mundo caminha a passos largos para a aplicação cotidiana de conceitos como inteligência artificial, robótica e indústria 4.0, principalmente em áreas da saúde. “Não vamos garantir o exercício profissional nos fechando para as inovações. Portanto, acho que temos que discutir as possibilidades da telefarmácia como se está discutindo a telemedicina”, argumenta Luciana Colli, professora do ICTQ.

Na prática, a telefarmácia já ocorre, fazendo parte da realidade brasileira há algum tempo. Pode não ser amplamente executada e limitada a alguns serviços, mas já é possível encontrar iniciativas isoladas, como na Drogasil e na Drogaria Araujo, por exemplo.

Entre os principais fatores que poderiam justificar o atendimento farmacêutico remoto estão o envelhecimento da população, a dificuldade de acesso ao acompanhamento farmacoterapêutico e a violência nas grandes cidades, que faz com que as pessoas saiam cada vez menos de casa.

Não há limites para a tecnologia. Já existem, no mercado, equipamentos que permitem monitoramento da pressão arterial a distância, que beneficiam principalmente idosos que vivem sozinhos. A população brasileira com 60 anos ou mais chegará a 66,5 milhões – 29,3% do total – até 2050, segundo estudo do IBGE.

Na opinião do farmacêutico militar, professor e assessor técnico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Matheus Tavares, um dos benefícios da telefarmácia é o atendimento a pessoas com dificuldades de se deslocar pela idade ou porque tiverem um AVC, por exemplo. “Pacientes com doenças crônicas também poderiam ser acompanhados”, destaca. O diabetes é exemplo. Até 2045, segundo o International Diabetes Federation (IDF), serão 23 milhões de casos no Brasil. Hoje, há 12 milhões de pessoas diagnosticadas com a doença.

Há casos em que a telefarmácia cai muito bem, como orientações a pessoas que precisam esclarecer dúvidas na madrugada ou um idoso que acordou com algum efeito colateral. Uma conversa com o farmacêutico pelo Skype ou por uma chamada de vídeo no WhatsApp pode salvar vidas.

Quem já passou por situação semelhante foi o empresário Marcus Vinicius. Há cerca de um ano, numa determinada noite, acordou e não conseguiu voltar a dormir. Tratava-se de um quadro de insônia relacionado à ansiedade e ao estresse.

“Sempre tenho um ansiolítico em casa prescrito pelo médico, mas, em função de um medicamento de uso contínuo que eu tomava na época, fiquei com medo de usar o ansiolítico e passar mal com alguma interação medicamentosa ou reação adversa. Ao buscar a caixa do medicamento, vi na embalagem da farmácia a divulgação do serviço Farmacêutico 40 horas da Drogasil. Liguei imediatamente”, relata o empresário.

Marcus conta que teve todos os esclarecimentos dos quais precisava, em linguagem acessível. “Tomei o medicamento e dormi feliz da vida. É importante que os órgãos de classe não fiquem alienados com o que está acontecendo no mundo em termos de tecnologia, e isso inclui a telefarmácia”, diz.

O serviço da Drogasil conta com um especialista em saúde e tratamento para acolher dúvidas e necessidades. Na loja, pelo telefone ou por e-mail, é possível falar com um dos farmacêuticos da rede em qualquer horário.

Em 2000, a Pague Menos foi pioneira ao implantar o SAC Farma.A equipe é constituída por farmacêuticos e acadêmicos de Farmácia. O serviço estreita relações com clientes de todo o País e estabelece um canal de comunicação por meio de diferentes atividades. A relação inclui orientação farmacêutica, posologia, comparação entre fármacos, substituição similar, dúvidas sobre medicamentos genéricos, medicamentos controlados, contraindicações, associações medicamentosas, apresentações, esclarecimento sobre tratamentos médicos, análise da compreensão das receitas médicas que não estão legíveis ou dúvidas no tratamento prescrito, entre outros temas relativos à saúde.

A Drogaria Araujo é outro exemplo. A rede conta com uma Central Farmacêutica que atua 24 horas ininterruptamente. Nas farmácias, há totens por onde o cliente e o farmacêutico se veem e conversam. Em outras lojas, há atendimento full time via telefone do profissional, esclarecendo dúvidas e dando orientação farmacêutica. Aos poucos, a telefarmácia vai ganhando forma.

Riscos e preocupações

As possibilidades são inúmeras, mas há riscos associados que precisam ser levados em consideração, na opinião do farmacêutico Matheus Tavares. “Pesa contra, por exemplo, a dificuldade de se executar a anamnese do paciente com precisão quando feita por vias remotas. Talvez, por isso, seja importante tomar o exemplo da teleconsulta, cuja regra diz que a primeira consulta é sempre presencial”, diz. Segundo Tavares, somente na consulta farmacêutica presencial é possível observar o comportamento do paciente, notando tremores e prostração.

Para o farmacêutico, a dispensação não pode acontecer sem avaliação presencial do paciente, porque a receita por si só não diz nada, e a terapêutica é sempre individualizada. Portanto, o primeiro encontro, para ele, deve ser sempre presencial, seguido do acompanhamento farmacêutico remoto.

“A telefarmácia nunca substituirá a presença física do farmacêutico, ainda mais com processos pouco sólidos e sinais de internet que variam muito de um local para outro. Cabe discutir, mas há que se levar em consideração prós e contras”, observa Tavares.

Para a farmacêutica, professora da Unisuam e mestre em Ciências do Cuidado em Saúde, Ana Lucia Caldas, o debate é válido para avaliar o uso da tecnologia como mais uma ferramenta para ampliar, facilitar ou mesmo possibilitar o atendimento aos pacientes, mas nunca com o intuito de substituir a presença do profissional. “O fator da presença humana é primordial para o paciente. Consigo enxergar a tecnologia contribuindo e facilitando a vida das pessoas, não as substituindo”, argumenta.

O CFM colocou no ar uma plataforma online para colher sugestões para o aperfeiçoamento da Resolução nº 2.227/18, que pode ser consultada neste link. De qualquer modo, a resolução não propõe que a tecnologia substitua o médico, mas que o auxilie. O assunto, como se pode ver, não está pacificado. E você, o que pensa sobre a telefarmácia?

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