Nos últimos dias, intensificaram-se as especulações de que a Presidência da República e o Ministério da Economia, depois de um forte lobby do setor supermercadista, preparam uma medida provisória para autorizar a venda de MIP em supermercado sem as mesmas exigências que a legislação faz para as farmácias. Não é de agora que esse tema vem sendo colocado em pauta. No momento, há três projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com a mesma proposta.
Devido aos riscos sanitários envolvidos na dispensação de medicamentos sem a presença de um farmacêutico, as entidades do setor concordam que esse debate deveria contar, principalmente, com a participação do Ministério da Saúde e da Anvisa. E que não há urgência nesse tema, haja vista existirem mais de 80 mil farmácias e drogarias no Brasil, número suficiente para cobrir 99,9% das cidades brasileiras e atender à toda a população, segundo levantamento do IQVIA.
“Isso é um grande equívoco, e por que não dizer ilegal. Supermercados têm de seguir as mesmas regras das farmácias, e o consumidor tem o direito de contar com assistência farmacêutica para indicar o produto mais adequado, tirar dúvidas no uso e monitorar efeitos inadequados. Na ótica dos supermercados, nada disso é importante. Quem vai tirar dúvidas do consumidor? O açougueiro? O repositor da seção de legumes?”, questiona o CEO da Abrafarma, Sergio Mena Barreto, entidade que representa as grandes redes no Brasil.
O executivo participou de uma reunião com o Ministério da Economia e saiu muito mal impressionado com a visão rudimentar que se tem da saúde, da desinformação sobre os efeitos da não adesão ao tratamento e dos agravos e riscos de uma medida como essa. “Esse não é um tema somente econômico. Não se trata de ‘apenas mais um canal de vendas’. Essa discussão deve envolver o Ministério da Saúde, Anvisa, defesa do consumidor, a academia e toda a sociedade que está preocupada com a saúde pública”, defende Mena Barreto.
Preparada para questionar judicialmente uma medida que trate estabelecimentos de forma desigual, a Abrafarma cita o exemplo de outros países que vendem MIPs em supermercados. “Nos EUA e Canadá, eles têm uma farmácia no local. Há regras e boas práticas a serem cumpridas, requisitos que têm de ser seguidos. Supermercados já podem vender MIPs e outros medicamentos. Basta ter uma farmácia. A lei já cobre essa situação”, acrescenta.
Para a ABCFarma, entidade que representa o comércio farmacêutico a nível nacional, a proposta está na contramão das conquistas da sociedade alcançadas por meio da legislação sanitária vigente. “A simples venda de medicamentos sem prescrição médica em supermercados ignora a necessidade de Autorização de Funcionamento (AFE) e licenciamento específico para esses estabelecimentos, bem como ignora a necessidade do profissional legalmente habilitado para tal fim, o farmacêutico”, pontua o presidente executivo da associação e consultor jurídico, Rafael Espinhel.
No Rio de Janeiro, a Ascoferj também se posicionou contrária à venda de MIPs em supermercados. “Não é razoável que os supermercados possam expor MIPs sem que os consumidores tenham a possibilidade de recorrer à orientação do farmacêutico. A legislação farmacêutica é clara ao afirmar que a prerrogativa da venda do medicamento é da farmácia. Portanto, não é uma questão de ordem econômica e sim sanitária”, defende o presidente da Ascoferj, Luis Carlos Marins.
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MIP em supermercado: intoxicação por automedicação
No Brasil, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), da Fiocruz, aponta que os medicamentos são o maior fator de intoxicação e envenenamento, respondendo por 27,11% dos 76.115 casos de intoxicação ocorridos em 2017, ou seja, 20.637 pessoas intoxicadas, de acordo com o último dado disponível. Em 2007, foram 34.068 casos.
No entanto, o próprio Sinitox informa que o menor número de casos registrados nas estatísticas, nos últimos anos, ocorreu devido a menor participação dos Centros de Informação e Assistência Toxicológica (CIATs) nesses levantamentos. Portanto, o número não vem decrescendo, como parece ocorrer, e as comparações devem ser realizadas com cautela.
Outro estudo demonstra que cerca de 40% dos casos de intoxicação registrados no Estado de São Paulo são causados por medicamentos. Entre os dez princípios ativos, dois são MIPs: paracetamol e dipirona. Nesse caso, foram analisados os dados dos últimos dez anos dos atendimentos realizados nos CIATs.
“Os dados demonstram que a ampliação indiscriminada de pontos de venda favorece a banalização do consumo desses produtos, estimulando a automedicação e o consumo irresponsável. Sob a análise econômica, discordamos veemente do argumento de que a permissão da comercialização acarretaria aumento da concorrência e, consequentemente, redução de preços. Em 2018, enquanto o IPCA/IBGE subiu 3,75%, a inflação dos produtos farmacêuticos foi menor, de 1,63%, e a taxa de aumento autorizada pelo governo atingiu 2,43%”, argumenta Espinhel.
Iguais sendo tratados de maneira desigual
Para a farmacêutica e presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado do Rio de Janeiro (CRF-RJ), Tania Mouço, a possível venda dos medicamentos nos supermercados terá uma pressão imensa para não haver as mesmas regras que hoje são praticadas em farmácias. “Isso é um absurdo, tendo em vista as regras rígidas às quais as farmácias estão submetidas pelos órgãos reguladores. A meu ver, seria ‘rasgar’ a Constituição ao tratar os ‘iguais de maneira desigual’. Qual é a diferença do MIP vendido na farmácia para o que será vendido nos supermercados? Não podemos admitir que as medidas ditas econômicas possam sobrepor as medidas sanitárias”, lamenta Tania.
Segundo a presidente do CRF-RJ, é uma medida que incentiva a automedicação, colocando as pessoas em risco, sem terem a oportunidade de consultar um farmacêutico que possa orientar sobre o uso adequado dos medicamentos. “Medicamentos não são mercadorias que podem ser colocadas em uma gôndola ao lado do caixa ou nas prateleiras ao lado de biscoitos e balas, mesmo que sejam MIPs, pois são isentos de prescrição médica, mas não de risco sanitário, com possibilidades de serem comprados por crianças e adolescentes.”
Risco sanitário varia de um MIP para outro
De acordo com Tania, os medicamentos, para serem considerados isentos de prescrição, precisam obedecer a certos critérios determinados pela Anvisa, que envolvem a segurança, o baixo potencial de causar danos à saúde, entre tantos outros.
“Como os princípios ativos são diversos, conforme descritos em instrução normativa, não podemos dizer que todo MIP é igual. Além disso, as reações adversas que podem ocorrer, as interações com outros medicamentos e alimentos e a presença de doenças ou comorbidades interferem diretamente nos resultados terapêuticos. Logo, os MIPs são diferentes e precisam de acompanhamento durante seu uso”, destaca Tania.
Para Tania, a “motivação econômica” para se colocar MIP em supermercado cria uma desigualdade entre os usuários dos medicamentos isentos de prescrição dispensados em farmácias e os que serão vendidos nos supermercados ou em qualquer local definido por uma medida provisória ou um projeto de lei.
Por fim, vale destacar que entre as quatro regras de ouro para o uso responsável de MIPs criadas pela Associação Brasileira da Indústria de Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip) está “escolher somente medicamentos isentos de prescrição médica, de preferência com a ajuda de um farmacêutico”.